quinta-feira, 23 de março de 2017

Assassinato de cinco crianças - problema moral

 
(Revista Espírita, outubro de 1858)
 
 
       Lemos na Gazette de Silésie:
 
“A 29 de outubro de 1857 escreveram-nos de Bolkenham que um crime apavorante acabara de ser cometido por um garoto de doze anos. Domingo último, dia 25, três filhos do Sr. Hubner, ferreiro, e dois do Sr. Fritche, sapateiro, brincavam no jardim deste último. O jovem H..., conhecido por seu mau caráter, a eles se reuniu e os convenceu a entrarem num baú que estava guardado numa casinha, no jardim, e que era utilizado pelo sapateiro para levar as suas mercadorias à feira. As cinco crianças dificilmente nele podiam caber, mas, aos risos, se apinharam no baú, uns sobre os outros. Assim que entraram, o monstro fechou o baú, sentou-se sobre ele e ficou durante três quartos de hora a escutar, primeiro os seus gritos, depois os seus gemidos.

Quando finalmente cessaram os seus estertores e que ele as julgou mortas, abriu o baú. As crianças ainda respiravam. Tornou a fechá-lo, aferrolhou-o e foi empinar papagaio. Mas ao sair do jardim foi visto por uma menina. Compreende-se a ansiedade dos pais quando constataram o desaparecimento das crianças e o seu desespero quando, depois de longa procura, as encontraram no baú. Uma das crianças ainda vivia, mas não tardou a expirar. Denunciado pela menina que o vira sair do jardim, o jovem H... confessou seu crime com o maior sangue-frio e sem manifestar o menor arrependimento. As cinco vítimas, um garoto e quatro meninas de quatro a nove anos, foram hoje sepultadas.”
 
OBSERVAÇÃO: O Espírito interrogado é o da irmã do médium, que desencarnou há doze anos e sempre mostrou superioridade como Espírito.
 
1. Você ouviu a leitura que acabamos de fazer, do assassinato de cinco crianças, na Silésia, por outra de doze anos?

─ Sim, minha pena ainda exige que escute as abominações da Terra.
 

2. Que motivos teriam impelido um menino daquela idade a cometer uma ação tão atroz e com tamanho sangue-frio?

─ A maldade não tem idade. Ela é natural numa criança e raciocinada no homem adulto.
 

3. Sua existência numa criança, sem raciocínio, não denotará a encarnação de um Espírito muito inferior?

─ Ela vem diretamente da perversidade do coração: é o seu próprio Espírito que o domina e o impele à perversidade.
 

4. Qual poderia ter sido a existência anterior de tal Espírito?
 
─ Horrível.
 

5. Em sua anterior existência, pertenceria ele à Terra ou a um mundo ainda inferior?
 
─ Não sei o bastante, mas deveria pertencer a um mundo bem mais atrasado que a Terra. Ele ousou vir para a Terra. Será duplamente punido.
 

6. Nessa idade teria o menino suficiente consciência do crime que cometeu? Caber-lhe-á responsabilidade como Espírito?
 
─ Ele tinha a idade da consciência. Isto basta.
 

7. De vez que esse Espírito ousou vir à Terra, para ele muito elevada, pode ser constrangido a regressar a um mundo em relação com a sua natureza?
 
─ Sua punição é justamente retrogradar; é o próprio inferno. Eis a punição de Lúcifer, do homem espiritual que se rebaixou ao nível da matéria; é o véu que doravante lhe oculta os dons de Deus e sua divina proteção. Esforçai-vos, pois, na reconquista desses bens perdidos e tereis reconquistado o paraíso que o Cristo veio abrir para vós. É a presunção, o orgulho do homem que queria conquistar aquilo que só Deus podia ter.
 
OBSERVAÇÃO: Uma observação é feita a propósito do verbo ousar, empregado pelo Espírito. Citam-se exemplos de Espíritos que se acharam em mundos para eles muito elevados e que foram obrigados a regressar a um outro mais em harmonia com sua própria natureza. A tal respeito alguém fez notar ter sido dito que os Espíritos não podem retrogradar. A isto respondemos que, realmente, os Espíritos não podem retrogradar, no sentido de que não é possível perder aquilo que foi adquirido em conhecimento e em moralidade; podem, entretanto, decair em posição. Um homem que usurpa uma posição superior à que lhe conferem sua capacidade e sua fortuna pode ser constrangido a abandoná-la e voltar à sua posição natural. Ora, não é a isto que se pode chamar decair, pois que ele apenas volta à sua esfera, de onde havia saído por ambição e por orgulho. O mesmo se dá em relação aos Espíritos que querem subir muito rapidamente para mundos onde se acharão deslocados.

Espíritos superiores também podem encarnar em mundos inferiores, onde vão cumprir missões de progresso. A isto não se pode chamar de retrogradação, pois é apenas devotamento.
 

8. Em que é a Terra superior ao mundo ao qual pertencia o Espírito de quem acabamos de falar?
 
─ Ali há uma fraca ideia de justiça. É um começo de progresso.
 

9. Depreende-se disto que em mundos inferiores à Terra não há nenhuma ideia de justiça?
 
─ Não. Os homens ali vivem apenas para si e não têm por móvel senão a satisfação de suas paixões e de seus instintos.


10. Qual será a posição desse Espírito numa nova existência?
 
─ Se o arrependimento vier a apagar, senão totalmente, pelo menos em parte, a enormidade de suas faltas, então ficará na Terra; se, ao contrário, persistir no que chamais de impenitência final, irá para um lugar onde o homem se encontra no nível dos animais.
 

11. Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar a sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?
 
─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.


Visto em http://ipeak.net/ - 22/03/2017

sábado, 18 de março de 2017

DOENÇAS DA ALMA


Na forja moral da luta em que temperas o caráter e purificas o sentimento, é possível acredites estejas sempre no trato de pessoas normais, simplesmente porque se mostrem com a ficha de sanidade física.

Entretanto, é preciso lembrar que as moléstias do espírito também se contam.

O companheiro que te fala, aparentemente tranquilo, talvez guarde no peito a lâmina esbraseada de terrível desilusão.

A irmã que te recebe, sorrindo, provavelmente carrega o coração ensopado de lágrimas.

Surpreendeste amigos de olhos calmos e frases doces, dando-te a impressão de controle perfeito, que soubeste, mais tarde, estarem caminhando na direção da loucura.

Enxergaste outros, promovendo festas e estadeando poder, a escorregarem, logo após, no engodo da delinquência.

É que as enfermidades do espírito atormentavam as forças da criatura, em processos de corrosão inacessíveis à diagnose terrestre.

Aqui, o egoísmo sombreia a visão; ali, o ódio empeçonha o cérebro; acolá, o desespero materializa fantasmas; adiante, o ciúme converte a palavra em látego de morte...

Não observes o semelhante pelo caleidoscópio das aparências.

É necessário reconhecer que todos nós, espíritos encarnados e desencarnados em serviço na Terra, ante o volume dos débitos que contraímos nas existências passadas, somos doentes em laboriosa restauração.

O mundo não é apenas a escola, mas também o hospital em que sanamos desequilíbrios recidivantes, nas reencarnações regenerativas, através do sofrimento e do suor, a funcionarem por medicação compulsória.

Deixa, assim, que a compaixão retifique em ti próprio os velhos males que toleras nos outros.

Se alguém te fere ou desgosta, debita-lhe o gesto menos feliz à conta de moléstia obscura de que ainda se faz portador.

Se cada pessoa ofendida pudesse ouvir a voz inarticulada do Céu, no instante em que se vê golpeada, escutaria, de pronto, o apelo da Misericórdia Divina: “Compadece-te”.

Todos somos enfermos pedindo alta. Compadeçamo-nos uns dos outros, a fim de que saibamos auxiliar.

E mesmo que te vejas na obrigação de corrigir alguém pelas reações dolorosas das doenças da alma que ainda trazemos, compadece-te mil vezes antes de examinar uma só.


Emmanuel / Francisco Cândido Xavier / Livro: “Justiça Divina”


quarta-feira, 15 de março de 2017

Da natureza Divina


(A Gênese - A Gênese segundo o Espiritismo, cap. II - Deus - Da natureza Divina, itens 8 a 19)

 
         8. Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreendê-lo, ainda nos falta o sentido próprio, que só se adquire por meio da completa depuração do Espírito. Mas, se não pode penetrar na essência de Deus, o homem, desde que aceite como premissa a sua existência, pode, pelo raciocínio, chegar a conhecer-lhe os atributos necessários, porquanto, vendo o que ele absolutamente não pode ser, sem deixar de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser.

       Sem o conhecimento dos atributos de Deus, impossível seria compreender-se a obra da criação. Esse o ponto de partida de todas as crenças religiosas e é por não se terem reportado a isso, como ao farol capaz de as orientar, que a maioria das religiões errou em seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a onipotência imaginaram muitos deuses; as que não lhe atribuíram soberana bondade fizeram dele um Deus cioso, colérico, parcial e vingativo.

        9. Deus é a suprema e soberana inteligência. É limitada a inteligência do homem, pois ele não pode fazer, nem compreender tudo o que existe. A de Deus, abrangendo o infinito, tem que ser infinita. Se a supuséssemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer o que o primeiro não faria e assim por diante, até ao infinito.

       10. Deus é eterno, isto é, não teve começo e não terá fim. Se tivesse tido princípio, houvera saído do nada. Ora, não sendo o nada coisa alguma, coisa nenhuma pode produzir. Ou, então, teria sido criado por outro ser anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se lhe supuséssemos um começo ou fim, poderíamos conceber um ser existente antes dele e capaz de lhe sobreviver, e assim por diante, ao infinito.

        11. Deus é imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, nenhuma estabilidade teriam as leis que regem o Universo.

      12. Deus é imaterial, isto é, a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria.

       Deus carece de forma apreciável pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, nada mais conhecendo além de si mesmo, toma a si próprio por termo de comparação para tudo o que não compreende. São ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e envolto num manto. Têm o inconveniente de rebaixar o Ser supremo até às mesquinhas proporções da Humanidade. Daí a lhe emprestarem as paixões humanas e a fazerem-no um Deus colérico e ciumento não vai mais que um passo.

      13. Deus é onipotente. Se não possuísse o poder supremo, sempre se poderia conceber um ser mais poderoso e assim por diante, até chegar-se ao ser cuja potencialidade nenhum outro ultrapassasse. Esse então é que seria Deus.

       14. Deus é soberanamente justo e bom. A providencial sabedoria das leis divinas se revela nas mais pequeninas coisas, como nas maiores, não permitindo essa sabedoria que se duvide da sua justiça, nem da sua bondade.

       O fato do ser infinita uma qualidade, exclui a possibilidade de uma qualidade contrária, porque esta a apoucaria ou anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais insignificante parcela de malignidade, nem o ser infinitamente mau conter a mais insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de um negro absoluto, com a mais ligeira nuança de branco, nem de um branco absoluto com a mais pequenina mancha preta.

       Deus, pois, não poderia ser simultaneamente bom e mau, porque então, não possuindo qualquer dessas duas qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas ao seu capricho e para nenhuma haveria estabilidade. Não poderia ele, por conseguinte, deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora, como suas obras dão testemunho da sua sabedoria, da sua bondade e da sua solicitude, concluir-se-á que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar de ser Deus, ele necessariamente tem de ser infinitamente bom.

       A soberana bondade implica a soberana justiça, porquanto, se ele procedesse injustamente ou com parcialidade numa só circunstância que fosse, ou com relação a uma só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e, em consequência, já não seria soberanamente bom.

      15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber-se Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, faz-se mister que ele seja infinito em tudo.

       Sendo infinitos, os atributos de Deus não são suscetíveis nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se lhe tirassem a qualquer dos atributos a mais mínima parcela, já não haveria Deus, porque poderia existir um ser mais perfeito.

       16. Deus é único. A unicidade de Deus é consequência do fato de serem infinitas as suas perfeições. Não poderia existir outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao poder desse outro e, então, não seria Deus. Se houvesse entre ambos igualdade absoluta, isso equivaleria a existir, de toda eternidade, um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder. Confundidos assim, quanto à identidade, não haveria, em realidade, mais que um único Deus. Se cada um tivesse atribuições especiais, um não faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade perfeita entre eles, porque nenhum possuiria a autoridade soberana.

       17. A ignorância do princípio de que são infinitas as perfeições de Deus foi o que gerou o politeísmo, culto adotado por todos os povos primitivos, que davam o atributo de divindade a todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes à Humanidade. Mais tarde, a razão os levou a reunir essas diversas potências numa só. Depois, à medida que os homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos, retiraram de seus símbolos as crenças que eram a sua negação.

       18. Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição de que nenhum outro o ultrapasse, porquanto o ser que o excedesse no que quer que fosse, ainda que apenas na grossura de um cabelo, é que seria o verdadeiro Deus. Para que tal não se dê, indispensável se torna que ele seja infinito em tudo.

         É assim que, comprovada pelas suas obras a existência de Deus, por simples dedução lógica se chega a determinar os atributos que o caracterizam.

      19. Deus é, pois, a inteligência suprema e soberana, é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não pode ser diverso disso.

       Tal o eixo sobre que repousa o edifício universal. Esse o farol cujos raios se estendem por sobre o Universo inteiro, única luz capaz de guiar o homem na pesquisa da verdade. Orientando-se por essa luz, ele nunca se transviará. Se, portanto, o homem há errado tantas vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que lhe estava indicado.

       Tal também o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Para apreciá-las, dispõe o homem de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar a si mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que tenda não tanto a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade.
 
       Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há de verdadeiro o que não se afaste, nem por um til, das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela de cujos artigos de fé nenhum esteja em oposição àquelas qualidades, e em que todos os dogmas pudessem suportar a prova desse controle, sem sofrer nenhum dano.
 

ALLAN KARDEC

Visto em http://ipeak.net/ - 15/03/2017

 

quarta-feira, 8 de março de 2017

A Providência


(A Gênese - A Gênese segundo o Espiritismo, cap. II - Deus - A Providência itens 20 a 30)

 
20. A providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo preside, mesmo às coisas mais mínimas. É nisto que consiste a ação providencial.

“Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, imiscuir-se em pormenores ínfimos, preocupar-se com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo?” Tal é a questão que a si mesmo dirige o incrédulo, donde conclui que, admitindo-se a existência de Deus, sua ação não deve se estender senão sobre as leis gerais do Universo; que o Universo funciona de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais cada criatura está submetida em sua esfera de atividade, sem que seja preciso o concurso incessante da Providência.

21.No estado de inferioridade em que ainda se encontram, só muito dificilmente podem os homens compreender que Deus seja infinito. Vendo-se limitados e circunscritos, eles o imaginam também circunscrito e limitado. Imaginando-o circunscrito, figuram-no quais eles são, à imagem e semelhança deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos não contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele adoram mais a forma que o pensamento. Para a maioria, é ele um soberano poderoso, sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Tendo restritas suas faculdades e percepções, não compreendem que Deus possa e se digne de intervir diretamente nas pequeninas coisas.

22. Impotente para compreender a essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais do que uma ideia aproximativa, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que, ao menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece impossível.

Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente, por meio tão-só das forças materiais. Se, porém, o supusermos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e sentirá.

23. As propriedades do fluido perispirítico dão-nos disso uma ideia. Ele não é de si mesmo inteligente, porque é matéria, mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do Espírito. Esse fluido não é o pensamento do Espírito; é, porém, o agente e o intermediário desse pensamento. Sendo quem o transmite, fica, de certo modo, impregnado do pensamento transmitido. Na impossibilidade em que nos achamos de o isolar, a nós nos parece que ele, o pensamento, faz corpo com o fluido, que com este se confunde, como sucede com o som e o ar, de maneira que podemos, a bem dizer, materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.

24. Seja ou não assim no que concerne ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente, quer por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão à nossa inteligência, figuremo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente que enche o universo infinito e penetra todas as partes da criação: a Natureza inteira mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele, cada átomo desse fluido, se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude. Nenhum ser haverá, por mais ínfimo que o suponhamos, que não esteja saturado dele. Achamo-nos então, constantemente, em presença da Divindade; nenhuma das nossas ações lhe podemos subtrair ao olhar; o nosso pensamento está em contacto ininterrupto com o seu pensamento, havendo, pois, razão para dizer-se que Deus vê os mais profundos refolhos do nosso coração. Estamos nele, como ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.

Para estender a sua solicitude a todas as criaturas, não precisa Deus lançar o olhar do alto da imensidade. As nossas preces, para que ele as ouça, não precisam transpor o espaço, nem ser ditas com voz retumbante, pois estando de contínuo ao nosso lado, os nossos pensamentos repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

25. Longe de nós a ideia de materializar a Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa de uma comparação apropriada a dar de Deus uma ideia mais exata do que os quadros que o apresentam sob uma figura humana. Destina-se ela a fazer compreensível a possibilidade que tem Deus de estar em toda parte e de se ocupar com todas as coisas.

26. Temos constantemente sob as vistas um exemplo que nos permite fazer ideia do modo pelo qual talvez se exerça a ação de Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, conseguintemente, do modo pelo qual lhe chegam as mais sutis impressões de nossa alma. Esse exemplo tiramo-lo de certa instrução que a tal respeito deu um Espírito.

27. “O homem é um pequeno mundo, que tem como diretor o Espírito e como dirigido o corpo. Nesse universo, o corpo representará uma criação cujo Deus seria o Espírito. (Compreendei bem que aqui há uma simples questão de analogia e não de identidade.) Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos, as articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode dizer, localizadas em pontos especiais do referido corpo. Se bem seja considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e diferente, a ninguém é lícito supor que se possam produzir movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito as sente todas, distingue, analisa, assina a cada uma a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido perispirítico.

Análogo fenômeno ocorre entre Deus e a criação. Deus está em toda parte, na Natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo. Todos os elementos da criação se acham em relação constante com ele, como todas as células do corpo humano se acham em contacto imediato com o ser espiritual. Não há, pois, razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam de maneira idêntica, num e noutro caso.

Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito ressente todas as manifestações, as distingue e localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada um o que lhe diz respeito.

Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador.” (Quinemant, Sociedade de Paris, 1867.)

28. Compreendemos o efeito: já é muito. Do efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela do efeito. Escapa-nos, porém, a sua essência íntima, como a da causa de uma imensidade de fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. Será então racional neguemos o princípio divino, por que não o compreendemos?

29. Nada obsta a que se admita, para o princípio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a irradiar incessantemente, inundando o Universo com seus eflúvios, como o Sol com a sua luz. Mas onde esse foco? É o que ninguém pode dizer. Provavelmente, não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação, sendo também provável que percorra constantemente as regiões do espaço sem-fim. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, em Deus há de ser sem limites essa faculdade. Enchendo Deus o Universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as partes onde a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, donde o poder dizer-se que está em toda parte e em parte nenhuma.

30. Diante desses problemas insondáveis, cumpre que a nossa razão se humilhe. Deus existe: disso não poderemos duvidar. É infinitamente justo e bom: essa a sua essência. A tudo se estende a sua solicitude: compreendemo-lo. Só o nosso bem, portanto, pode ele querer, donde se segue que devemos confiar nele: é o essencial. Quanto ao mais, esperemos que nos tenhamos tornado dignos de o compreender.
 
 
ALLAN KARDEC


Visto em http://ipeak.net/ - 08/03/2017