sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Votos de ano-novo



(Revista Espírita, fevereiro de 1862)
Abra no site do IPEAK


Várias centenas de cartas nos foram dirigidas pelo ano-novo, de modo que nos é materialmente impossível responder uma a uma. Pedimos, pois, aos nossos dignos correspondentes aqui recebam a expressão de nosso agradecimento sincero pelo testemunho de simpatia que tiveram a bondade de nos dar. Uma entre elas, entretanto, por sua natureza, exige uma resposta especial. É a dos espíritas de Lyon, subscrita por cerca de duzentas assinaturas.

Aproveitamos a circunstância para transmitir, a seu pedido, alguns conselhos gerais. A Sociedade Espírita de Paris, fundada por nós, julgando que podia ser útil a todo o mundo, não só nos sugeriu que a publicássemos na Revista, como também votou a sua impressão separada para ser distribuída a todos os seus sócios.

Todos aqueles que tiveram a gentileza de nos escrever participaram dos sentimentos de reciprocidade que aí exprimimos e que se dirigem, sem exceção, a todos os espíritas franceses e estrangeiros, que nos honram com o título de seu chefe e de seu guia na nova via que se lhes abre.

Não nos dirigimos apenas aos que nos escreveram, pela passagem do ano-novo, mas a todos os que, a cada momento, nos dão tocantes provas de seu reconhecimento pela felicidade e pelas consolações que encontram na doutrina e que nos relatam as suas penas e os seus esforços para ajudar a sua propagação. A todos, enfim, aos quais nossos trabalhos servem para algo na marcha progressiva do Espiritismo.

Resposta à mensagem dos espíritas lioneses por ocasião do Ano Novo.


Meus caros irmãos e amigos de Lyon.

A mensagem coletiva que tivestes a bondade de me enviar pela passagem do ano-novo causou-me viva satisfação, provando que conservastes de mim uma boa lembrança. Mas o que me deu maior prazer, em vosso ato espontâneo, foi o de encontrar, entre as numerosas assinaturas, representação de quase todos os grupos, pois é um sinal da harmonia reinante entre eles. Sinto-me feliz por terdes compreendido o objetivo desta organização, cujos resultados já podeis apreciar, pois agora vos deve ser evidente que uma sociedade única teria sido quase impossível.

Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que me formulais. Eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são os que Deus escuta. Ficai satisfeitos porque ele os escuta diariamente, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, em meus dias, com rapidez maravilhosa. Encaro como um grande favor do Céu o ser testemunha do bem que ela já faz. Essa certeza, da qual diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, me paga com lucros todas as penas e fadigas. Só uma graça peço a Deus, a de me dar a força física necessária para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de ser concluída. Mas, haja o que houver, terei sempre a consolação da certeza de que a semente das ideias novas, agora espalhada por toda a parte, é imperecível. Mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, a mim me é dado ver os primeiros frutos. Se algo lamento, é que a exiguidade de meus recursos pessoais não me permita pôr em execução os planos que tracei para seu mais rápido desenvolvimento. Se, porém, em sua sabedoria, Deus o quis de outro modo, legarei esse plano aos meus sucessores que, sem dúvida, serão mais felizes.

Malgrado a penúria de recursos materiais, o movimento de opinião que se opera ultrapassou toda expectativa. Crede, meus irmãos, que vosso exemplo não deixou de ter influência nisso.

Recebei nossas felicitações pela maneira pela qual sabeis compreender e praticar a doutrina. Sei quão grandes são as provas que muitos de vós tendes de suportar. Só Deus lhes conhece o termo aqui na Terra. Mas, também, quanta força contra a adversidade nos dá a fé no futuro! Oh! Lamentai os que acreditam no nada após a morte, pois para eles o mal presente não tem compensação. O incrédulo infeliz é como o doente que não espera a cura. Ao contrário, o espírita é como aquele que, doente hoje, sabe que amanhã estará curado.

Pedis que continue com os meus conselhos. Eu os dou de boa vontade aos que os pedem e creem que deles necessitam. Mas só a esses. Aos que julgam saber muito e que dispensam as lições da experiência, nada tenho a dizer, a não ser que desejo não que tenham um dia de lamentar-se por terem confiado demais nas próprias forças. Tal pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro espírito do Espiritismo. Ora, pecando pela base, aqueles provam, só por isto, que se afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos, por isso aproveito a circunstância para vos dirigir algumas palavras que vos provarão que, de perto ou de longe, sou todo vosso.

No ponto em que hoje as coisas se acham e considerando-se a marcha do Espiritismo por meio dos obstáculos semeados em sua rota, pode-se dizer que as principais dificuldades foram vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em bases que de agora em diante desafiam os esforços dos adversários.

Pergunta-se como pode ter adversários uma doutrina que nos torna felizes e melhores. Isto é muito natural. Em seu início, o estabelecimento das melhores coisas sempre fere interesses. Não tem sido assim com todas as invenções e descobertas, que revolucionam a Indústria? Não tiveram inimigos encarniçados aquelas que hoje são consideradas como benefícios e das quais não nos poderíamos privar? Toda lei que reprime abusos não tem contra si os que vivem do abuso? Como queríeis que uma doutrina que conduz ao reino da caridade efetiva não fosse combatida por quantos vivem no egoísmo? E sabeis como estes são numerosos na Terra! No princípio esperavam matá-lo pela zombaria. Hoje veem que tal arma é impotente e que, sob o fogo cerrado dos sarcasmos ele continuou sua rota sem tropeços. Não penseis que eles se confessarão vencidos. Não, o interesse material é mais tenaz. Reconhecendo que é uma potência que agora deve ser levada em conta, vão desfechar ataques mais sérios, mas que servirão para melhor provar a fraqueza deles. Uns o atacarão abertamente, em palavras e atos, e persegui-lo-ão até na pessoa de seus adeptos, tentando desencorajá-los à força de intrigas, enquanto outros sub-repticiamente, por vias indiretas, procurarão miná-lo surdamente. Ficai avisados: a luta não terminou. Estou prevenindo que eles vão tentar um supremo esforço. Não temais, entretanto, pois o penhor do sucesso está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação. Hasteai-a bem alto, porque ela é a cabeça de Medusa para os egoístas.

A tática ora em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha, e tende certeza de que quem quer que procure, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode ter boas intenções. Eis por que vos advirto para que tenhais a maior circunspeção na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos.

A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, isto não é possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos. Se houver fraternidade, não haverá sentimentos malévolos, mas não pode haver fraternidade com egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos que se chocam e se ferem por tudo; com ambiciosos que se desiludem quando não têm a supremacia; com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida. Daí, vem a dissolução. É o que queriam nossos inimigos e é o que tentarão fazer.

Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, é preciso que nele reine um sentimento fraterno. Todo grupo ou sociedade que se formar sem ter por base a caridade efetiva não terá vitalidade, enquanto os que se formarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, não podendo viver todos sob o mesmo teto, moram em lugares diversos. Entre eles, a rivalidade seria uma insensatez, pois ela não poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não pode ser entendida de duas maneiras. Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita pela prática da caridade em pensamentos, palavras e atos, e dizei a vós mesmos que aquele que em sua alma nutre sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja e de ciúme mente para si mesmo se pretende compreender e praticar o Espiritismo.

O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como matam os povos e as sociedades em geral. Lede a história e vereis que os povos sucumbem sob o abraço desses dois mortais inimigos da felicidade humana. Quando se apoiarem nas bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz entre si e consigo mesmos, cada um respeitando os bens e os direitos de seu vizinho. Essa será a nova era predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e para a qual todo espírita deve trabalhar, cada um na sua esfera de atividade. É uma tarefa que lhes incumbe, e da qual serão recompensados conforme a maneira pela qual a tenham realizado, pois Deus saberá distinguir os que no Espiritismo só procuraram a sua satisfação pessoal, dos que ao mesmo tempo trabalharam pela felicidade de seus irmãos.

Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa. Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.

Visando desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vá destruir a religião. Sabeis exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, agora vai com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo seria mais poderoso. Dizê-lo seria uma inabilidade, pois seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; ele é de todas, e não é de nenhuma em particular; por isso não diz a ninguém que a troque; deixa a cada um livre para adorar Deus à sua maneira e para observar as práticas que sua consciência lhe dita, pois Deus leva mais em conta a intenção do que o fato. Ide, pois, cada um aos templos do vosso culto, e provai com isso que vos caluniam quando vos taxam de impiedade.

Na impossibilidade material em que me acho de manter relações com todos os grupos, pedi a um de vossos confrades que me representasse mais especialmente em Lyon, como o fiz alhures: é o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento são do vosso conhecimento, tanto quanto a pureza de seus sentimentos. Além disso, sua posição independente lhe dá mais folga para a tarefa de que se quer encarregar; tarefa pesada, mas diante da qual ele não recuará. O grupo que formou em sua casa ele o fez sob meus auspícios e conforme as minhas instruções, quando de minha última viagem; ali encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. É com viva satisfação que verei todos os que me honram com sua confiança a ele se ligarem como a um centro comum. Se alguns quiserem fazer um grupo à parte, não os olheis com maus olhos; se vos atirarem pedras, nem as recolhais, nem as devolvais: entre eles e vós Deus será juiz dos sentimentos de cada um. Aqueles que creem ser os únicos a estar com a verdade que o provem por uma maior caridade e uma maior abnegação de amor-próprio, porque a verdade não poderia estar ao lado daquele que falta ao primeiro preceito da doutrina. Se estiverdes em dúvida, fazei sempre o bem: os erros do espírito pesam menos na balança de Deus que os erros do coração.

Repetirei aqui o que disse noutras ocasiões: em caso de divergência de opinião, o meio fácil de sair da incerteza é ver qual a que reúne mais partidários, pois há nas massas um bom-senso inato que não se poderia enganar. O erro só seduz alguns espíritos enceguecidos pelo amor próprio e por um falso julgamento, mas a verdade sempre acaba vencendo. Tende certeza, portanto, que o erro deserta das fileiras que se esclarecem e que há uma obstinação irracional em crer que um só tenha razão contra todos. Se os princípios que eu professo só tivessem ecos isolados, e se tivessem sido repelidos pela opinião geral, eu seria o primeiro a reconhecer que poderia ter me enganado; mas vendo crescer incessantemente o número dos aderentes em todas as camadas da sociedade e em todos os países do mundo, devo acreditar na solidez das bases sobre as quais repousam. Eis por que vos digo com toda a segurança para que marcheis com passo firme na via que vos é traçada. Dizei aos antagonistas que se eles querem que os sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão e que, ao mesmo tempo, seja uma garantia melhor para a ordem social. Pela vossa união, frustrai os cálculos dos que vos queiram dividir; provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos torna mais moderados, mais dóceis, mais pacientes, mais indulgentes, o que será a melhor resposta a dar aos seus detratores, ao mesmo tempo que a visão de seus resultados benéficos é o mais poderoso meio de propaganda.

Eis, meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais junto os meus votos para o ano que começa. Não sei que provas Deus nos destina para este ano, mas sei que, sejam quais forem, as suportareis com firmeza e resignação, pois sabeis que para vós, como para o soldado, a recompensa é proporcional à coragem.

Quanto ao Espiritismo, pelo qual vos interessais mais do que por vós mesmos, e cujo progresso, pela minha posição, posso julgar melhor que ninguém, sinto-me feliz em dizer-vos que o ano se inicia sob os mais favoráveis auspícios, e que ele verá, sem dúvida nenhuma, o número dos adeptos crescer numa proporção imprevisível. Mais alguns anos como estes que se passaram, e o Espiritismo terá a seu favor três quartas partes da população. Deixai que vos cite um fato entre milhares.

Num departamento vizinho de Paris há uma cidadezinha onde o Espiritismo penetrou apenas há seis meses. Em poucas semanas tomou um desenvolvimento considerável. Uma oposição formidável logo foi organizada contra os seus partidários, ameaçando até os seus interesses particulares. Eles enfrentaram tudo com uma coragem e um desinteresse dignos dos maiores elogios. Entregaram-se à Providência e a Providência não lhes faltou. Essa cidade conta com uma população operária numerosa, em cujo meio as ideias espíritas, graças à oposição levantada, aumenta dia a dia. Ora, um fato digno de nota é que as mulheres e as moças esperaram sua gratificação de ano-novo para comprar as obras necessárias à sua instrução e só para essa cidade um livreiro teve que remetê-las às centenas.

Não é prodigioso ver simples operárias reservarem suas economias para comprar livros de moral e de filosofia em vez de romances e bugigangas? Homens preferindo essa leitura às alegrias barulhentas e embrutecedoras do cabaret?[1] Ah! É que aqueles homens e aquelas mulheres, que sofrem como vós, agora compreendem que não é aqui que se realiza o seu destino. Abrem-se as cortinas, e eles entreveem os esplêndidos horizontes do futuro. Essa cidadezinha é Chauny, no departamento do Aisne. Novos filhos da grande família, eles vos saúdam, irmãos de Lyon, como seus irmãos maiores, e desde já formam um dos elos da cadeia espiritual que une Paris, Lyon, Metz, Sens, Bordeaux e outras, e que em breve ligarão todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternidade, porque em toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos preconceitos de seitas, castas e nacionalidades.

Vosso muito dedicado irmão e amigo,

ALLAN KARDEC


[1] Cabaret, café-concerto: estabelecimento onde se vende comida e bebida aos frequentadores. Cabaret é um termo indiferente que não implica nada de desfavorável, a não ser que é um lugar destinado à frequentação de “petites gens”, que quer dizer, ralé, plebe, populacho. (Dictionnaire Littré) (Nota da Equipe IPEAK)

Visto em http://ipeak.net/ - 01/02/2017


Nenhum comentário:

Postar um comentário